quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Pós-humano


No texto “O corpo biocibernético e o advento do pós-humano”, Lúcia Santaella oferecemos uma breve resenha histórica do processo de hibridização que o corpo humano tem vindo a sofrer numa estreita simbiose com as tecnologias. Parece-me claro que todo este processo surge, tanto da necessidade de resolver problemas funcionais e estéticos decorrentes de anomalias genéticas ou provocadas pelo ambiente, como pela ambição de ser mais forte, mais belo, mais competente ou simplesmente na procura de novas experiências sensoriais, estéticas ou artísticas. Como pano de fundo, neste trajeto, encontramos a forte influência do artefacto eletricidade/eletrónica, reforçada com chegada da “revolução digital”, sua descendente tecnológica. Marca a “entrada numa nova era”, que se prevê vir a influenciar de forma ainda mais marcante a nossa existência e o nosso corpo, actualmente já pós-humano.

A física, a química e a matemática (ciências base da eletrónica, que se realimentam dela própria para evoluírem, através da pesquisa, investigação e cálculo com artefactos eletrónicos), e as ciências na generalidade, como é do senso comum, estiveram e estão a ter um forte impacto sobre a humanidade e sobre a mãe natureza. Focando-nos na eletricidade passando depois para a eletrónica, primeiro a analógica, depois a digital, desde os finais do sec. XIX até à presente data, apercebemo-nos da sua influência decisiva naquilo que somos e para onde caminhamos. Isto numa dimensão e num periódico drasticamente antagónicos: nunca nenhum artefacto criado pelo ser humano teve tão forte influência, num tão curto período de tempo, no pressuposto desenvolvimento civilizacional.


No texto de Santaella encontramos referências explícitas à influência que o artefacto eletricidade/eletrónica teve neste mesmo desenvolvimento socio-cultural, até à revolução digital, considerada como a “entrada numa nova era”, que se prevê influenciar de forma ainda mais marcante a nossa existência e o nosso corpo.

No advento do pós-humano encontramos o efeito profundo da eletrónica (Hayles, 1992), que acaba por ser transversal a todas as tecnologias pós-humanas, especialmente se entendermos que as tecnologias aparentemente mais afastadas da eletrónica, como por exemplo as biotecnologias, são altamente dependentes desta, desde a fase de investigação até à produção final dos artefactos. As que mais dependem diretamente da eletrónica - aqui mais digital/computacional - são: RV – Realidade Virtual e a Rede das Redes – Internet.
Relativamente às “múltiplas realidades do corpo”, das classes apresentadas por Santaella, voltamos a encontrar no corpo esquadrinhado, plugado, simulado e digitalizado uma forte dependência da eletrónica. Em todas elas, encontramos as expressões artísticas em que "as artes tomam como foco e material de criação as transformações por que o corpo, e com ele, os equipamentos sensório-perceptivos, a mente a consciência e a sensibilidade do ser humano vêm passando como fruto de suas simbioses com tecnologias" (p.271)

Mas a maior revolução ainda poderá estar para vir: quando se conseguir armazenar e processar informação em sistemas vindos da biotecnologia e da nanotecnologia – já em franco desenvolvimento – em que os processos de conversão digital/analógico serão necessariamente diferentes, ou até mesmo inexistentes, mais próximos do processo biológico natural, ou seja, do analógico. Aqui o corpo híbrido será todo ele orgânico, sendo a parte maquínica utilizada na preparação dos métodos e das interfaces que serão implantadas a posteriori no nosso corpo.


Apenas com nota, será interessante refletirmos sobre o seguinte: num contexto meramente eletrónico e biológico, é relevante termos a noção que o corpo humano nunca irá comunicar diretamente com a máquina digital, contrariamente ao senso comum. Entre a máquina digital e o ser humano, existirá sempre uma interface que converterá os sinais digitais em analógicos em digitais e vice-versa, os chamados conversores analógicos/digitais e digitais/analógicos. O homem é, e será sempre, um ser analógico, assim como toda a natureza que nos rodeia. O digital é simplesmente um artefacto genial inventado pelo homem que armazena informação num sistema binário, em 0’s e 1’s, na verdade, ainda muito imperfeito, do qual se esperam sempre maiores taxas de amostragem, maior capacidade de processamento, maiores taxas de transferência, etc., etc. e dificilmente um dia será perfeito. Penso que a maior revolução ainda está para vir quando se conseguir armazenar e processar informação num sistema que não o digital, como por exemplo, os sistemas vindos biotecnologia e nanotecnologia – já em franco desenvolvimento – em que os processos de conversão serão necessariamente diferentes, ou até mesmo inexistentes, mais próximos do processo biológico natural, ou seja, do analógico

Santanella, Lúcia, O corpo biocibernético, o advento do pós-humano, S.P.,Ed.Paulus, 2003